A configuração de toda e qualquer linguagem conforma-se necessariamente aos potenciais e limites da mídia em que ela se materializa. Esse é o ponto de partida para se entender a expressão, hoje muito corrente, de “narrativa transmídia”.
A transposição da narrativa ficcional de uma mídia a outra já existia nas adaptações de romances e contos literários para o cinema. Grandes cineastas souberam realizar, com qualidade cinematográfica similar à literária, a transposição da narrativa verbal para o mundo da imagem em movimento, no qual as personagens tomam corpo e voz. São inúmeros os exemplos de filmes tão grandiosos quanto os textos em que se baseiam. Não se trata, evidentemente, de mera cópia, nem poderia ser, pois romance e cinema, embora sejam ambos narrativos, são dois sistemas de linguagem distintos que se amoldam e se ajustam à mídia em que têm existência. Com os recursos e procedimentos que são próprios da linguagem fílmica, diretores consagrados conseguem realizar verdadeiras transcriações das obras literárias que referenciam e reverenciam.
O Hobbit: pôster do filme (2013) e capa do livro (publicado pela 1a vez em 1937).
Logo depois do cinema, foi a vez da televisão tomar de empréstimo obras literárias e teatrais para suas construções narrativas. Os casos mais bem realizados costumam acontecer nas minisséries, já que as novelas, pelo tempo de cada capítulo e pela extensão de sua duração, não podem transgredir o padrão do gênero folhetinesco. Além disso, como típico meio de comunicação de massa, a televisão deve respeitar o repertório médio de sua audiência.
Embora o paradigma de adaptações da literatura para o cinema e televisão continue existindo, ele sofreu grandes transformações com o advento da cultura digital. Essas transformações caracterizam-se por novas expectativas, novas posturas e novos comportamentos por parte do leitor e do espectador, em um contexto em que todos podem ser produtores, criadores, autores e propagadores de suas próprias ideias. Com isso, o campo ficcional expandiu-se.
As narrativas hoje cruzam-se , intercambiam-se, complementam-se nas passagens de uma mídia para a outra, especialmente graças ao potencial do computador para facilitar essas passagens. Mudaram, com isso, as condições da ficcionalidade no contexto contemporâneo, em que proliferam as mídias para a invenção, tradução e adaptação de formas narrativas nômades.
Elementos ficcionais são configurados a partir de distintos gêneros literários, peças dramáticas ou cômicas, fantasias medievais, filmes etc, propiciando a composição de narrativas em que, ao se recontarem histórias, se expande nosso modo de interpretá-las. Isso significa que cada mídia conta histórias, concentrando-se em dar o melhor de si, de acordo com os potenciais e limites que lhe são próprios. Assim, uma ficção criada numa mídia é expandida em outra, e seu universo pode ser ampliado do romance para um filme, do filme para a TV, assim como seu mundo pode ser vivenciado e explorado no formato de um videogame.
A par de tudo isso, os programas de computadores ainda permitem que leitores se tornem imediatamente produtores. É o que acontece nas fanfictions, comunidades de pessoas que escrevem volumosas novas histórias ambientadas e inspiradas em obras de ficção já existentes. São centenas de histórias cujo volume vai muito além das páginas dos romances, filmes ou games em que se inspiram. Isso só se tornou possível porque, no mundo contemporâneo, a ficção se tornou líquida e nômade.