Cursista, foi no contexto que abordamos na tela anterior que a imprensa passou a se referir a estes bailes como “Black Rio”, e, dentre diversas reportagens que se sucediam nos periódicos, uma em especial, de julho de 1976 no Jornal do Brasil, intitulada “Black Rio – O orgulho (importado) de ser negro no Brasil”. Essa reportagem chamou a atenção, além do público leitor do jornal, do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), polícia política da Ditadura Militar. O Regime militar acreditava que, por trás das equipes de som, pudessem existir grupos clandestinos de esquerda insuflando movimentos de massa em torno da “questão racial” ou qualquer outra forma de protesto social.
A intimação a diversos membros de equipes organizadoras dos bailes e a dançarinos(as) acabou repercutindo e alimentando um debate em torno do próprio caráter e natureza dos bailes, entre críticos musicais e intelectuais (se alienação e/ou colonialismo cultural), e segmentos do então incipiente movimento negro passam a apoiar os(as) dançarinos(as) e as equipes organizadoras. Segundo Hermano Vianna, estava em curso um processo de “apropriação cultural” e de resistência étnica em torno de um estilo musical que, até então, não tinha essa pretensão.
À medida que as festas funks se popularizavam em outras capitais brasileiras, diversos setores da sociedade buscavam, cada qual com suas estratégias de legitimação, atribuir-lhes novos significados. De um lado, intelectuais e militantes do movimento negro buscavam associá-las a marcas identitárias afrodescendentes e dar-lhes um significado ligado à conscientização. Por exemplo, em Salvador, a difusão dos bailes funks permitiu a “revitalização do afoxé baiano e o nascimento do primeiro bloco afro”, o Ilê Aiyê (VIANNA, 1988, p. 29). Gilberto Gil compôs em 1977 a música “Ilê Aiyê” (em seu álbum “Refavela”) se referindo, justamente, a essa novidade surgida nos bailes blacks.
Por outro lado, a indústria fonográfica também buscava tirar partido desta “onda black”, primeiro com o lançamento de coletâneas de grandes sucessos internacionais reproduzidos nas festas, depois com a tentativa de criar o “soul nacional”, algo que não teve tanto sucesso – com exceção de cantores como Tim Maia e Sandra Sá.
Cursista, enquanto a moda das discotecas chegava ao fim no início da década de 80, e os(as) jovens, ou retornavam ao rock, ou aderiam a novas sonoridades e estilos, como o new wave, o punk, ou ainda, davam impulso ao rock brasileiro a partir de 1982, nas periferias e subúrbios os bailes funks se popularizavam e criavam seus próprios estilos “funkeiros”. Nesse momento, incluia-se novas sonoridades, como o “charme” – espécie de funk mais melódico e sem o peso do hip hop – e o “Miami Bass”, ritmo da Flórida / EUA, que trazia músicas mais erotizadas e batidas mais rápidas. Além dessas características, a mudança na indumentária é significativa, sobretudo por parte deste público predominantemente suburbano.
Foi ao longo dos anos 1990 que o funk, a princípio no Rio de Janeiro , e depois em diversas outras cidades brasileiras, alcançou popularidade e dimensões inéditas. Os bailes promovidos em comunidades periféricas reuniam milhares de jovens, e ao mesmo tempo que a mídia dava destaque a seus cantores e às danças coreografadas, incluindo a veiculação em rádios e TVs, houve também um processo de “demonização” e estereotipia em torno de seus (suas) integrantes, praticantes e consumidores(as).
O “funkeiro” tornou-se pejorativo; suas vestimentas consideradas “bregas” ou “cafonas”; suas letras vistas pela crítica musical como indecorosas, sinônimo de “mau gosto” musical e estético. Em suma, um processo ambíguo, em que, se por um lado, havia a “glamourização” do funk, sobretudo por parte dos(as) frequentadores(as) e por parte da mídia, por outro lado, houve um processo de “inferiorização” que, evidentemente, levava em conta sua pertença social e étnica, não raro explorava a violência e o “perigo” em torno dos bailes funks. Foi por esta época que, ao lado do “funkeiro”, os termos “tribo”, “gangues”, “galeras”, dentre outros, se cristalizam na mídia e no imaginário social. Ao final dos anos 1990, o “funk carioca” entrou em crise, com diversos clubes fechados judicialmente, MCs presos e enquadrados por apologia ao crime e empresários acusados de aliciamento de menores (LOPES, 2010, p. 132).
Depois da crise do final dos anos 90, o funk vem se renovando a partir dos anos 2000, mantendo seu caráter de espetáculo de massas, mas inovando no formato, e em suas letras e performances, algumas identidades sexuais e de gênero ganham visibilidade. Diversas mulheres se notabilizam por músicas que exaltam a sensualidade e, em alguma medida, propõem novos papéis sexuais e de gênero. Ainda se trata de algo bastante controverso, uma vez que um dos traços que tem caracterizado boa parte da produção musical desse estilo eram as letras que ressaltavam assimetrias, sexismos e machismos.
Apesar da presença cada vez maior de mulheres na produção de bailes, como compositoras de músicas e na criação de novas performances, não há uma preocupação explícita em desafiar as “rígidas regras de gênero” e os papéis bem demarcados nas relações afetivas que as move. Nesse sentido, segundo a pesquisadora Adriana Carvalho Lopes, em sua tese de doutorado, ao entrevistar homens e mulheres produtores musicais do funk, eles simplesmente repetiriam e responderiam como “reprodutores de uma determinada lógica compulsória dos gêneros” (LOPES, 2010, p. 140).
Contudo, partindo da hipótese da filósofa norte-americana e uma das principais teóricas do feminismo contemporâneo, Judith Butler, “é somente no interior das práticas de significação repetitiva que se torna possível a subversão da identidade” (BUTLER, 2003, apud LOPES, 2010, p. 140). Ou seja, quando entram em cena, as “funkeiras” acabam subvertendo, em suas letras e performances, certas posições marcadamente tradicionais das relações de gênero, ainda que não se configurem como “resistência explícita” ou como “plataforma feminista”.
Cantoras como Tati Quebra-Barraco, grupos como a Gaiola das Popozudas e, mais recentemente, fenômenos de sucesso como Larissa de Macedo Machado, a Anitta, têm se destacado neste terreno em que, se por um lado não participam como resistentes a identidades cristalizadas e normatizadas por padrões normativos de disciplina e poder, por outro acabam constituindo suas identidades como “jovens independentes, que gostam de festa, possuem uma vida sexualmente ativa e falam abertamente de sua sexualidade” (LOPES, 2010, p. 130).