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Tópico II - Identidades

Hip Hop: seus processos de identificação

Cursista, o sucesso mundial alcançado pelo Hip Hop ao longo do tempo; a sua intensa comercialização; a produção e o consumo de mercadorias ligadas à sua estética (roupas, bonés, acessórios); sua distribuição em diversos veículos de difusão (espaços públicos, rádios, televisão, produção de clipes musicais, canais e rádios online, tecnologias digitais como MP3 e mais recentemente, streaming de músicas em plataformas como Napster® e outros programas); bem como a evidente disponibilidade dada a jovens sem recursos financeiros fazerem suas próprias músicas e disputar ou não esse grande “mercado” global, enfim, todas estas condições configuram um cenário que, a princípio, pode parecer contraditório quando se apresenta o Rap como expressão de certas identidades, sobretudo étnico-raciais, de gênero, bem como de condição socioeconômica.

Afinal, as identidades sociais e seus processos de socialização específicos não se perderiam diante de fenômenos como globalização ou mundialização?

Sociologicamente, pode-se dizer que ambos os processos – os de globalização e os de identificação – se interpenetram. Se por um lado, a globalização – que, diga-se de passagem, segundo algumas interpretações, remonta ao século XVI com as Grandes Navegações –, tornou as fronteiras, físicas ou simbólicas, mais permeáveis, transponíveis, porosas, e os fluxos e cruzamentos entre elas mais frequentes, por outro não as erradicou e muito menos as tornou irrelevantes. As praticas culturais aparentemente “desterritorializadas” não escapam às condições e contextos nas quais elas ocorrem.

Nesse sentido é que as práticas culturais, onde, quando e como são exercidas por seus praticantes, passam por um processo de “re-territorializalização”.

Os processos de “territorialização” ou a demarcação de “fronteiras” se referem não apenas a localização geográfica mas, sobretudo, à posição do indivíduo na sociedade, no grupo social, na rede de relações mais amplas que configura desde sua socialização a partir de certas “instituições sociais” – como família, escola, trabalho, etc –, como também o processo de identificação que se dá na relação com seus pares, elementos que conferem sentido à sua experiência.

Pudemos perceber que, quando falamos em “culturas juvenis”, a “localização” socioeconômica, a pertença étnico-racial, a condição de gênero, a inserção socioespacial, dentre outras, são elementos que reforçam esses processos de identificação a partir de certos “estilos” e que, no caso, permitem que os(as) jovens interpretem sua posição social e atribuam um sentido ao conjunto de experiências vivenciadas.

Quando falamos em estilos musicais como o funk e o hip hop, não estamos diante apenas de “músicas” ou “sonoridades”, mas de um conjunto de atitudes, comportamentos, perspectivas, experiências compartilhadas, etc., através das quais diversos jovens constroem suas experiências, ao mesmo tempo em que dão sentido a elas.

 

Ainda nestes casos específicos do Hip Hop, estamos diante de uma parcela da população jovem que se situa no “limiar da precariedade”, onde muitas vezes o mundo do trabalho se antecipa ao mundo escolar como agência socializadora, ou ainda onde a família aparece como a única instituição que continua tendo forte referência formativa. Numa sociedade global caracterizada por profundas mudanças e por uma sensação perene de incertezas, na medida em que estas mesmas agências ou instituições, digamos, “clássicas” de socialização, deixam de oferecer as certezas e seguranças que ofereciam no passado, as experiências que lhes garantiriam certa “segurança” precisam ser construídas por eles mesmos, a partir do grupo de pares e de “estilos” pelos quais sua localização social e/ou pertença étnico-racial, por exemplo, são “reconhecidas” e muitas vezes, reforçadas como atributos demarcadores de identidade.

Tanto nos Estados Unidos como no Brasil e, hoje em dia, em quase todas as grandes cidades que apresentam condições similares de desigualdade de renda e de oportunidades, o Hip Hop compartilha da condição de uma “alternativa de lazer, divertimento e mecanismos de contenção e substituição da violência física das brigas de gangues pelas ‘batalhas’ artísticas em seu primeiro momento. Posteriormente, ele tornou-se movimento político munido das expressões artísticas” dos elementos que vimos acima (FREIRE, 2011, p. 49). E nesse sentido, é possível afirmarmos com Juarez Dayrell que:

(...) cada um dos jovens rappers ou funkeiros encontra-se em determinado grupo social, mas não se reduz a esse vínculo e ao que pode ser pensado a partir da posição desse grupo em um espaço social. Encontra-se em uma sociedade cujas agências clássicas de socialização, como veremos no caso da escola e do trabalho, se mostram frágeis, não sendo uma referência de valores e normas. (...) Por outro lado, esse jovem vai abrindo outros espaços, nos quais o grupo de pares, o estilo ao qual adere e o consumo dos meios de comunicação de massa vão cada vez mais se constituindo como parâmetros de avaliação e organização das relações interativas com a realidade externa. Esse jovem tem acesso a múltiplas referências culturais, constituindo um conjunto heterogêneo de redes de significado que são articuladas e adquirem sentido na sua ação cotidiana. Assim, ele interpreta a sua posição social, dá um sentido ao conjunto das experiências que vivencia, faz escolhas, age na sua realidade: a forma como ele se constrói e é construído socialmente, como se representa como sujeito, é fruto desses múltiplos processos. (DAYRELL, Juarez. “O rap e o funk na socialização da juventude. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 1, 2002, p. 121)

Segundo sociólogos(as) e teóricos(as) da cultura como Stuart Hall (1932-2014) e Paul Gilroy, o Hip Hop, dentre outros estilos musicais similares, pode ser concebido como uma das expressões culturais da “diáspora africana”. Esse conceito, num sentido amplo, busca compreender um “novo momento de sociabilidade de uma população ou de um grupo étnico marcado por processos de deslocamento, fuga, exílio, migração forçada”, elementos que são articulados para a reconstrução de processos identitários (FREIRE, 2011, p. 48). A contribuição de ambos os autores é importante para, logo de saída, não estabelecermos uma relação direta, causal ou mecânica, entre certas expressões culturais e uma suposta “essencialidade” racial, como se certas músicas ou estilos fossem exclusivas de determinados grupos étnicos.

Ou seja, quando supomos uma “essência”, supomos ao mesmo tempo uma naturalização e a ausência de historicidade, confundimos o histórico e cultural e o natural, biológico e genético, atitudes opostas a uma reflexão sociológica que leve em conta a construção histórica das próprias categorias sociais. Nesse sentido, tanto os processos de identificação étnico-raciais, quanto os de gênero e sexualidade aqui presentes, são pensados em contextos relacionais e históricos, nos quais as juventudes protagonizam expressões culturais que dão sentido à sua experiência cotidiana.

De acordo com José Alberto Simões (2010), desde seu surgimento na década de 1970 há evidências da participação, ao lado de afrodescendentes, de jovens latino-americanos (as) – porto-riquenhos(as) e mexicanos(as) – nos bairros suburbanos de Nova York e sua participação no movimento hip hop. E à medida que suas diversas expressões se prolongam no tempo e no espaço, o hip hop se torna “transcultural” e “trans-étnico”. Além disso, mais recentemente vem contando com a presença expressiva de mulheres que, não apenas na condição de expectadoras, mas de produtoras e artistas, apresentam em suas letras e performances tanto experiências que envolvem a condição de gênero, muitas vezes numa perspectiva igualmente conciliadora com a pertença étnica, para não falar de versões femininas do “gangsta rap” (isto é, do estilo específico dentro do Rap que celebra a violência e a criminalidade) (SIMÕES, 2010, p. 35).

A partir da segunda metade da década de 1990, com cantoras norte-americanas como Queen Latifah, Lauryn Hill, India Arie, dentre outras, houve um processo mais intenso de capacitação e empoderamento das mulheres, bem como de letras que se contrapunham à realidade masculina quase onipresente até então no cenário Hip Hop. Numa perspectiva ampla, é possível dizer que na experiência brasileira do Hip-Hop, as identidades étnico-raciais e de classe predominam, acompanhadas de um movimento mais recente de expressões que ressaltam a condição de gênero, sendo que estas últimas também associadas à experiência das mulheres não brancas e de condição socioeconômica desfavorecida.

Nessa conjunção entre identificação étnico-racial e de classe, presentes no hip hop nacional, podemos perceber inclusive, a subversão, com sentido irônico e/ou de denúncia social, de certos motivos edênicos da “identidade nacional” brasileira – tais como os vistos na primeira parte deste tópico. Reunimos abaixo algumas letras e clipes de Rap que expressam as identidades que mencionamos acima. Nossa intenção é que, a partir destas referências, o professor e a professora possam ter elementos para uma reflexão em torno dos sujeitos que compõem parte de sua realidade escolar e construam um diálogo com seus(suas) jovens, diálogo esse que pode ser mediado e fomentado pelas ferramentas sociológicas e pelas TDIC disponíveis em sala de aula.

 

 

“Liberte-se” (MV Bill)
Clipe e letra.

“Transformação” (MV Bill)
Clipe e letra.

 

“Ventre livre de fato” (MC Luana Hansen) 
Fonte: Youtube

“Gueto ao Luxo” (Karol Comká)
Clipe e letra.


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