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Tópico I - Socialização

As Agências de Socialização na Perspectiva do Distanciamento

Dando continuidade à nossa discussão sobre processos de socialização, vejamos agora algumas teorias que foram formuladas para explicar, sobretudo, os processos cada vez mais rápidos e intensos de transformação social. Em geral, as perspectivas compreensivas e hermenêuticas das ciências sociais concebem a socialização numa direção bem diferente do que vimos até agora.

Contrapostas às teorias da internalização, as quais enfatizam a atuação das instituições e agências sobre os(as) indivíduos(as) e de como os últimos incorporam o “sistema” em sua vida cotidiana, as teorias do distanciamento privilegiam a subjetividade individual e admitem uma separação maior entre o “ator” e o “sistema”. Dão maior atenção à heterogeneidade cultural e social e, sobretudo, às escolhas e interações nas quais os indivíduos(as) constroem, desconstroem e reconstroem sociabilidades. Entre as abordagens do distanciamento, existem aquelas que também se expressam em termos de “papéis sociais” e de “atores”; por exemplo, o sociólogo Erving Goffman. Aliás, é desse autor a expressão “distanciamento do papel”, querendo com isso compreender o desempenho de certos(as) indivíduos(as) em dissimular os papéis a que são, muitas vezes forçosamente, obrigados a desempenhar.

Ou seja, o desempenho de um papel social “sem convicção” ou de forma dissimulada tende a ser mais frequente quanto mais coercitiva for a situação vivida pelo “ator”, isto é, em situações muitas vezes de privação de liberdade: o indivíduo “nativo” ou “indígena” que representa o papel de criado em uma sociedade colonizada, mas que planeja a revolta contra seus exploradores; o presidiário que trabalha na lavanderia da penitenciária e usa as máquinas lavar suas próprias roupas; o paciente de um manicômio que finge, na frente das enfermeiras, tomar seus comprimidos, mas os expele quando sozinho (BERGER, 1986, p. 149-151).

Outras abordagens enfatizam a ideia de sujeito e agente, e não mais exclusivamente as do ator social e seus papéis. Nestas abordagens, consideradas mais próximas de uma perspectiva hermenêutica (alguns autores as identificam ainda como pós-modernas), os mecanismos que garantem a reflexividade, a crítica e a justificação de distanciamento entre as duas dimensões, a individual e a da sociedade, são bastante ressaltados (DUBET; MARTUCCELLI, 1997).

Não é o caso de explorarmos profundamente as diferentes perspectivas epistemológicas sobre as quais se fundamentam ambas as teorias, mas gostaríamos de ressaltar os pontos de partida que, julgamos, tornariam mais compreensíveis a nós, professores e professoras de sociologia no ensino médio, bem como aos nossos estudantes, essas diferentes abordagens. Para isso, antes de prosseguirmos com a apresentação das perspectivas hermenêuticas sobre a socialização, sintetizamos as diferenças dos pontos de partida no quadro a seguir.

 

Juventude e Trangressão

Cursista, é possível dizer que as perspectivas da internalização se baseiam num pressuposto segundo o qual o “todo social” é preexistente às suas partes, isto é, aos atores sociais: indivíduos e grupos mais específicos da sociedade. Essa ideia parte de uma tradição ou paradigma das ciências sociais: o funcionalismo, que, como vimos no item anterior, busca investigar as consequências das nossas ações para a integração e para a estrutura mais ampla da sociedade. Esta concepção pressupõe que, semelhante à natureza, a sociedade é algo unitário e coerente, uma “coisa” concreta. Daí a analogia com um sistema, cujas partes interagem entre si para o equilíbrio do todo.

Trata-se, portanto, de uma forma de conhecimento que tem muita semelhança com a biologia – a qual, aliás, lhe serve como guia para analisar o funcionamento dos sistemas sociais. Assim como a natureza, a sociedade possuiria regras gerais de funcionamento, ou uma “lei geral” – com a gravidade ou a seleção natural, por exemplo – que se reproduzem independentemente do que os(as) indivíduos(as) pensam a seu respeito. Assim, as perspectivas da internalização tendem a enfatizar a semelhança entre as ciências naturais e as ciências sociais.

Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, iniciou-se uma enorme controvérsia acerca da natureza “científica” das Ciências Sociais: enquanto alguns defendiam que ela se aproximasse das ciências naturais ao buscarem a objetividade, a certeza quanto à leitura dos fenômenos sociais, outros passaram a defender que as ciências sociais seriam, na verdade, “ciências do espírito”, isto é, que se baseiam na compreensão das ideias e o sentido que os(as) indivíduos(as) e grupos sociais atribuem às suas ações, bem como às ações dos demais.

Esses autores buscaram amparo numa tradição filosófica conhecida como hermenêutica.

Assim, a tradição hermenêutica busca compreender e interpretar o sentido que damos às nossas ações sociais. A estrutura social também está presente nesta perspectiva, surgindo tanto como uma condição para nossas decisões, como também, como o resultado continuamente reproduzido da mediação intencional humana. (OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996).

Quando cientistas sociais como Wilhelm Dilthey (1833-1911) e depois Max Weber (1864-1920) formularam suas pesquisas, buscaram aproximar as ciências sociais da tradição filosófica hermenêutica, com base no seguinte pressuposto: se os eventos naturais podiam ser explicados por métodos precisos, os eventos sociais (a história, os valores, a cultura), só poderiam ser compreendidos. Essa nova leitura implica considerarmos, como Weber o faz, que a realidade social é “caótica”, infinita em suas potencialidades, inesgotável em seus efeitos. Jamais conseguiríamos explicar convenientemente qualquer fenômeno social, pois nenhuma teoria consegue, com precisão, prever os efeitos das ações humanas.

No entanto, podemos nos aproximar, com grau variado de objetividade, da compreensão do sentido que os(as) indivíduos(as) atribuem ao que fazem.

Por exemplo: para compreendermos os fenômenos relacionados à juventude e à cultura juvenil, precisamos apreender o sentido que os jovens atribuem ao que praticam, isto é, o significado que suas ações sociais têm para si mesmos e como são reconhecidos pelos demais.

É aqui que podemos enxergar as implicações da hermenêutica, bem como da ideia de que as Ciências Sociais são ciências compreensivas, para essa outra vertente de teorias sobre a socialização, isto é, as perspectivas do distanciamento: se o funcionalismo tinha como premissa o consenso de valor como mecanismo central da integração social (isto é, a ideia de poder enxergar a sociedade como um sistema que tende sempre ao equilíbrio e, por consequência, todas as nossas ações, por mais divergentes que sejam com os valores e a moral dominante, acabam por reforçá-las), as teorias pós-funcionalistas começaram a rever esse pressuposto ao demonstrar a enorme variação subcultural em termos de valores existentes na sociedade contemporânea.

O interessante dessa polêmica é que foram justamente os estudos do fenômeno do “desvio” e da “transgressão”, bem como o interesse crescente sobre a “juventude” (e suas manifestações culturais ao longo da segunda metade do século XX, tais como a contracultura, o movimento “hippie”, os movimentos políticos de contestação, etc.), que reforçaram essa perspectiva. Como explicar a dinâmica da sociedade contemporânea e sua diversidade de valores, atitudes, comportamentos e ideias, recorrendo apenas ao consenso e à integração social?

O vídeo a seguir, uma aula sobre a sociologia de Max Weber proferida pelos professores Gabriel Cohn e Flávio Pierucci, pode tornar mais claras as ideias que esboçamos acima. Inclusive você, cursista, pode retornar aos vídeos sobre Durkheim, para um exercício de comparação e síntese entre estas duas grandes perspectivas epistemológicas distintas. Ainda, no vídeo abaixo, veja as implicações que uma sociologia compreensiva e a ideia do agente social podem trazer para o conceito de socialização numa perspectiva hermenêutica.

 


Univesp TV (2012).


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