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Tópico I - Socialização

Com base nessa perspectiva sobre a socialização, um importante conjunto de autores tem buscado compreender a emergência de culturas juvenis, muitas delas estigmatizadas ou cercadas por estereótipos negativos, relacionados à violência, indisciplina, marginalidade. Assim, retornamos a um dos pontos de nossa conversa inicial, isto é, sobre as possibilidades de se compreender a juventude sociologicamente.

Para cientistas sociais como François Dubet e Bernard Charlot, as perspectivas da socialização via internalização tinham como pressuposto um modelo de sociedade na qual os(as) indivíduos(as), e também as instituições, podiam ser redutíveis a uma lógica única, a um papel, a uma programação cultural de condutas (DAYRELL, 2002). O(A) sujeito(a) era o próprio sistema social incorporado. Ocorre que, com as profundas transformações sociais em curso na sociedade contemporânea, marcada por fenômenos como a globalização, pela maior interação entre os(as) indivíduos(as), pela presença cada vez mais onipresente da indústria cultural e dos meios de comunicação, pela heterogeneidade cada vez mais intensa de princípios culturais e sociais que organizam nossa conduta, pelas transformações do mundo do trabalho e pelos novos arranjos familiares, as categorias usadas para entender os processos de socialização deveriam, igualmente, ser pensadas para abrigar essa diversidade.

Com base nisso, Dubet radicaliza a perspectiva do distanciamento ao propor a ideia de experiência. Para o autor, o uso comum dessa expressão remete, muitas vezes, a sensações subjetivas, maneiras de sentir, estados emocionais. No entanto, ela é, antes de tudo, uma “atividade cognitiva”, uma maneira de “construir o real” e sobretudo, de “verificá-lo”, de “experimentá-lo”.

 


“[...] experiência constrói os fenômenos a partir das categorias do entendimento e da razão. [...] a experiência social não é uma ‘esponja’, uma forma de incorporar o mundo através das emoções e das sensações, mas uma maneira de construir o mundo. É uma atividade que estrutura o caráter fluído da ‘vida’” (DUBET, 2010, p. 86).

Em outras palavras, os(as) indivíduos(as) se construiriam socialmente através de experiências sociais. Seriam elas que articulariam o trabalho do(a) indivíduo(a), definiriam sua identidade, dariam sentido e coerência a suas ações, sempre dialogando com as lógicas de ação que encontrariam ao longo de vários momentos e instâncias.

Dubet usa como exemplo desse processo de construção de identidade a experiência dos(as) adolescentes das periferias de Paris, bairros que são conhecidos como “banlieues”: aqueles(as) jovens não seriam apenas vítimas do desemprego, do fracasso escolar e da pobreza, estariam também submetidos(as) a um conjunto amplo de estereótipos negativos, à estigmas que os(as) afetam negativamente, associados à má reputação do bairro em que vivem, ao racismo e à violência policial de que são, na maior parte das vezes, o alvo preferencial. Nesse sentido, muitos(as) desses(as) jovens acabariam interiorizando justamente esses “papéis” de vítimas, aceitariam a imagem negativa a que estariam associados(as), como a incapacidade, a ausência de vontade, o fracasso escolar e a violência.

No entanto, aí aqui que entra a novidade da argumentação de Dubet: essa “interiorização” não seria passiva, cega ou “alienada”. Ao contrário, quando reforçam deliberadamente os estereótipos negativos de que são “vítimas”, os(as) jovens agiriam estrategicamente. Negociariam e venderiam uma imagem que é exagerada propositalmente. Ou seja, exagerariam demasiadamente a violência, a delinquência e se identificariam excessivamente com os(as) personagens com que seriam associados(as). Assim, acabariam reconstruindo um “eu” próprio, independente das categorias de identidade impostas de fora; buscariam dar uma certa “dignidade” própria a seu comportamento – por mais rechaçado que sejam considerado pelo senso comum. (DUBET, 2003, p. 90).

 

Para Refletir

Soldados Suburbanos - Gangsta Rap [Clip Oficial] (2013).

Entrevista com Rap Gyn (2011).

 

O clipe acima é da banda “Soldados Urbanos”, um grupo de Rap de Goiânia/GO. Tentamos encontrar a letra da música, mas nos principais sites que reúnem letra e vídeo (como vagalume.com.br ou letras.mus.br), esta banda não aparece. É compreensível. O tipo de música dessa banda, a exemplo de várias outras existentes, é conhecido como “gangsta rap”, um estilo cujo termo foi cunhado pelos meios de comunicação para descrever um gênero que se caracteriza pela descrição do dia a dia violento dos(as) jovens das grandes cidades. A palavra gangsta é derivado de gangster, soletrada pela pronúncia no inglês vernáculo afro-americano. Surgido nos anos 1980 nos EUA (entre os pioneiros, o hoje bastante conhecido Ice-T), as letras desse gênero são geralmente consideradas violentas e tendem a criticar a sociedade e mostrar ao mundo a injustiça, sendo que algumas apresentam ainda a perspectiva do(a) criminoso(a), do(a) bandido(a), do(a) marginal. Nesse sentido, se o gênero RAP já é, em alguma medida, estigmatizado, o subgênero GANGSTA RAP é ainda mais intensamente recriminado.

Contudo, gostaríamos que você, cursista, prestasse atenção na entrevista, realizada por uma rádio comunitária direcionada ao público consumidor desse estilo, com um de seus integrantes e perceba que a forma como ele se expressa, enquanto artista e produtor musical, não se distancia muito da de vários outros artistas, consagrados ou em início de carreira.

Essa experiência de comparar a letra e o clipe da música e o comportamento de seus integrantes na condição de artista (poderíamos dizer, representando papéis diferentes em cada situação), é interessante para percebermos a distância entre aquilo com que nós, expectadores(as), julgamos e o que esses grupos expressam sobre si mesmos.

Para ajudar nesta reflexão, sugerimos mobilizar os argumentos de François Dubet acerca da experiência como forma de socialização.

 

Cursista, o objetivo desses exercícios de reflexão que partem do diálogo com essas perspectivas são fundamentais para nós. Estas possibilitam uma observação de como muitas dessas problemáticas podem estar presentes no nosso cotidiano escolar. De que maneira interpretamos e nos relacionamos com a sociabilidade musical vivida por nossos(as) estudantes?  Como ela pode ser um importante instrumento para melhor nos relacionarmos com eles e elas, e também para desenvolver diferentes reflexões nas aulas de Sociologia? A partir deste momento do nosso núcleo esperamos discutir ainda mais essas questões.


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