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Tópico II - Identidades

Pensando Conceitualmente

Algumas questões conceituais

Caro(a) cursista, ao longo deste curso vimos apresentando algumas controvérsias existentes no âmbito da Sociologia e das Ciências Sociais. A atenção quanto às perspectivas teóricas visam garantir alguma “responsabilidade discursiva” , sobretudo diante de um universo social que, no caso, corresponde às manifestações e expressões identitárias de nossos próprios alunos e alunas do Ensino Médio. Assim, para que as aulas de sociologia não se tornem meros momentos de divergências quanto a “opiniões” ou “convicções” arraigadas, isto é, uma aula sobre o “senso comum”, é necessário, sempre que possível, conhecermos um pouco do contexto histórico das categorias de análise, as origens, sentidos, alcances e efeitos que certos conceitos têm na construção dos nossos “objetos” sociológicos.

No âmbito da Sociologia, e mais especificamente, da sociologia da juventude, existe uma controvérsia quanto à classificação e entendimento destas identidades. “Cultura jovem” ou “tribos urbanas”, “culturas juvenis” ou “subculturas”, cada nomenclatura pressupõe perspectivas epistemológicas e teóricas, com alcances e sentidos distintos.

Para alguns autores, ao longo do tempo teria havido um processo de internacionalização e ultrapassagem de diferenças sociais e a emergência de uma espécie de “linguagem internacional da juventude”, linguagem essa que acompanhou e expressou todas essas novas atividades relacionadas ao lazer e ao “tempo livre”, a ponto de tornarem características de um comportamento “jovem”. O filósofo e sociólogo Edgar Morin expressou esse “comportamento” no âmbito mais amplo de uma “cultura jovem”.

“O desenvolvimento dessa cultura está ligado a uma conquista da autonomia dos adolescentes no seio da família e da sociedade. A aquisição de relativa autonomia monetária (dinheiro para o gasto diário dado pelos pais nas sociedades avançadas e, alhures, dinheiro para o diário conservado pelos adolescente que ganham a vida e entregam o que ganham aos pais) e de relativa liberdade no seio da família (o que nos conduz ao problema da liberalização, aqui, da desestruturação, acolá, da família) permitem aos adolescentes adquirir o material que lhes insuflará sua cultura (transistor, toca-discos e mesmo violão), que lhes dá sua liberdade de fuga e de encontro (bicicleta, motocicleta, automóvel) e lhes permitirá viver sua vida autônoma no lazer e pelo lazer. Essa cultura, essa vida aceleram, em contrapartida, as reivindicações dos adolescentes que não se satisfazem com a semiliberdade adquirida, e fazem crescer sua contestação a propósito de um mundo adulto cada vez menos semelhante ao deles.” (MORIN, 1986, apud ABRAMO, 1994, p. 30.)

Para outros autores, ao invés de uma ampla e disseminada “cultura jovem”, haveria na verdade, ao menos nos grandes centros urbanos, comportamentos específicos de jovens, fragmentados, efêmeros, de inscrição local, desprovidos de organização e orientados para certos tipos de consumo cultural, no âmbito dos quais seus integrantes fariam parte de uma espécie de “comunidade emocional”. Essa caracterização foi enunciada inicialmente pelo sociólogo francês Michel Maffesoli, em sua obra O tempo das tribos, de 1987 (MAGNANI, 2005, p. 174). Para o autor, a emergência desses pequenos grupos, voláteis, altamente diferenciados, contrapostos à homogeneidade e ao individualismo característicos da sociedade de massas, bem como às identidade bem marcadas da modernidade, expressavam o que o autor denominava de neotribalismo:

 

 
“[...] o neotribalismo é caracterizado pela fluidez, pelos ajuntamentos pontuais e pela dispersão. E é assim que podemos descrever o espetáculo da rua nas megalópoles modernas. O adepto do jogging, o punk, o look retrô, os “gente bem”, os animadores públicos, nos convidam a um incessante travelling. Através de sucessivas sedimentações constitui-se a ambiência estética da qual falamos. E é no seio de uma tal ambiência eu, pontualmente, podem ocorrer essas ‘condensações instantâneas’, tão frágeis, mas que, no seu momento são objeto de forte envolvimento emocional.” (MAFFESOLI, 1987, apud MAGNANI, 2005, p. 175).

 

Maffesoli, certamente, usou “tribo” como uma metáfora para caracterizar esse comportamento gregário dos(as) jovens contemporâneos. No entanto, com o passar do tempo, essa palavra que buscava ser um “conceito”, transformou-se em “preconceito”, sobretudo quando incorporada pelo “senso comum”. Assim é que, para a grande mídia e para o senso comum, a palavra “tribo” ganhou ampla circulação e aceitação, ao lado de outras referências mais marcadamente negativas, como “bandos” ou “gangues”, em geral associando esses processos de identificação à violência e delinquência juvenis, sobretudo em se tratando de jovens etnicamente não brancos(as) e/ou marginalizados(as). Dito de outra forma, a palavra “tribo” foi usada com o propósito de discriminar, atribuindo um sentido pejorativo ou identificando como “exótico” aquilo que não é convencional (PAIS, 2004, p. 19).

Por outro lado, muitas etiquetas criadas para “demonizar” os(as) jovens acabaram sendo apropriadas por esses grupos, enquanto “emblemas de identidade”. Para o sociólogo contemporâneo José Machado Pais, autor de diversos trabalhos sobre culturas juvenis e sociabilidades contemporâneas, “os jovens são o que são, mas também são (sem que o sejam) o que deles se pensa, os mitos que sobre eles se criam. Esses mitos não refletem a realidade, embora a ajudem a criar” (PAIS, 2004, p. 13). Assim, um importante preceito analítico seria “não nos deixarmos contagiar por equívocos conceituais que confundem a realidade com as representações que dela surgem” (PAIS, 2004, p. 13). Ou seja, as palavras também nos tribalizam, pois nelas há um “poder mágico” de rotular, uma vez que representam as coisas, e o modo como esse poder opera “parece razoavelmente óbvio, manifestando-se na construção de um mundo feito de palavras, qualificativos, etiquetas” (PAIS, 2004, p. 13).

Dito de outro modo: há diferentes usos da noção de “tribo” em contextos temporais diferentes. A metáfora tanto pode aludir a uma realidade como também nos iludir e nos equivocar. Uma vez que a metáfora surge da intuição de uma analogia entre coisas dessemelhantes (por exemplo, entre a “tribo primitiva”, composta por grupos de indivíduos(as) unidos por laços de parentesco e por uma estrutura social bastante simples, e a ideia de “tribo urbana” usada para identificar o comportamento de jovens das grandes cidades contemporâneas, caracterizadas por estruturas sociais complexas etc.), o elemento mais importante é explicitar essas dessemelhanças que estão na base da analogia, sem perder de vista a própria importância da analogia.

 

 
“O que a metáfora da tribo sugere é a emergência de novas formações sociais que decorrem de algum tipo de reagrupamento entre quem, não obstante as suas diferenças, procura uma proximidade com outros que, de alguma forma, lhe são semelhantes de acordo com o princípio ‘qui se ressemble s´assemble’ [um provérbio francês que, em português soaria como: “diz-me com quem andas, te direi quem és”]. É, pois, em formas de sociabilidade que devemos pensar quando falamos de tribos urbanas, sociabilidades que se orientam por normas auto-referenciais de natureza estética e ética e que assentam na produção de vínculos identitários.” (PAIS, José Machado; BLASS, Leila Maria. Tribos urbanas: produção artística e identidades. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2004, p. 19.)

Por fim, uma última consideração acerca da natureza complexa, entre o “local” e o “mundial” do fenômeno das tribos urbanas e das culturas juvenis, sobretudo em tempos de globalização e internet.


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