Entre os anos finais do século XIX, sobretudo após a Abolição da Escravatura em 1888, até meados do século XX, o debate sobre a formação do povo, enquanto elemento de identidade nacional, mobilizou boa parte da intelectualidade brasileira. Médicos, juristas, historiadores, cientistas sociais e literatos formularam representações as mais diversas, e com efeitos políticos igualmente distintos, acerca da constituição física e biológica do povo brasileiro, dos significados da miscigenação, dos questionamentos quanto às possíveis relações entre etnicidade e cultura política, entre outras questões. Uma vez que boa parte dessas teses tinha um caráter normativo, tiveram também efeitos jurídico-políticos, educacionais e culturais – por exemplo, nos debates quanto aos limites e alcances da cidadania; nas várias interpretações sobre o sentido da educação pública, sua abrangência e sua natureza; nas políticas culturais, principalmente aquelas da Era Vargas (1930-1945), entre outros.
De uma perspectiva ampla, este debate se caracterizou pela polarização entre perspectivas racialistas – quando não, deliberadamente “racistas”, embora fossem consideradas científicas e avançadas para sua época – predominantes entre 1880 e 1920, e culturalistas, a partir dos anos 1930. Ambas as leituras foram, por sinal, criticadas nos anos 1950 em diante por sociólogos(as) e cientistas sociais que, com teorias e metodologias precisas, desconstruíram muitas das mitificações contidas naquelas interpretações.
Pode-se dizer que as interpretações racialistas, apesar de suas diferenças internas, baseiam-se no pressuposto de que haveria uma relação direta e causal entre a biologia e a sociedade, entre as origens étnicas de segmentos populacionais – em particular as diversas etnias africanas escravizadas – e seu “grau de civilização”, compreendendo com isso sua inteligência e sua cultura política.
Para muitos intelectuais – cujo maior exemplo é o médico e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) –, a miscigenação entre brancos e negros condenaria o Brasil à condição de inferioridade perante outras nações “civilizadas”. Com base nas teorias antropométricas, na criminologia e na medicina legal europeias, Nina Rodrigues formulou uma visão bastante pessimista quanto à viabilidade do país, destinado mais ao “atraso” do que ao progresso em virtude do contingente afro-brasileiro, considerado “inferior” na escala evolutiva.
No início do século XX, Oliveira Vianna (183-1951), outro intelectual com trânsito entre as nascentes ciências sociais e o mundo da política, destacou-se no debate racial oferecendo uma saída mais “otimista”: a eugenia, isto é, o estudo e o controle social sobre a população com o objetivo de interferir e melhorar a qualidade racial das futuras gerações, física ou mentalmente. Para Oliveira Vianna, o estabelecimento de uma política imigrantista europeia, por exemplo, poderia corrigir a suposta inferioridade atávica do brasileiro – ideia essa, diga-se de passagem, já em curso desde meados do século XIX, sendo, de fato, implementada. Em certa medida, tanto as representações sobre a formação do brasileiro quanto as medidas postas em prática, via estímulo e proteção à imigração europeia, constituem o que podemos hoje chamar de “política de branqueamento”, ou “embranquecimento”, isto é, a crença na superioridade intelectual, política e cultural das populações brancas e europeias e na miscigenação a partir da imigração dessas populações. No entanto, Oliveira Vianna vai além disso, ao propor que apenas um poder executivo forte e autoritário oriente os destinos da nação, em detrimento da democracia e da representação política liberal, tidas, para ele, como condenadas ao fracasso. Não é uma coincidência, portanto, Oliveira Vianna ter participado ativamente do regime ditatorial do Estado Novo (1937-1945), ao lado de outras figuras importantes do cenário político.
Quadros sinópticos (1878) Brasil. Reproduzido em SCHWARCZ, L. (1996), p. 158.
Os quadros sinópticos com traços fisionômicos e as gravuras decorrentes de estudos de arqueólogos e atropólogos físicos, tais como George Gliddon e Josiah Nott, entre outros, foram bastante divulgados pelas correntes científicas do século XIX. Tornaram-se também ferramentas da Criminologia, particularmente de sua versão italiana, difundida por Cesare Lombroso (1835-1909) e bastante influente no Brasil através de Nina Rodrigues. A associação entre constituição física, ossatura do crânio e potencial de delinquência ou inferioridade era o pressuposto que sustentava, de maneira geral, as teorias racialistas.
“A Redenção de Can”, Modesto Brocos e Gómez (1895).
A tela “Redenção de Can” (1895), do pintor espanhol naturalizado brasileiro Modesto Brocos y Gómez (1852-1936), quando apresentada em Londres trazia a seguinte legenda: “Negro passando ao branco, na terceira geração, por efeito do cruzamento de raças”. Pode-se dizer que esta obra que serviu como retrato da sociedade brasileira miscigenada e da ideia de branqueamento, sendo uma de suas interpretações a ideia de que, por intermédio do neto branco, a avó negra estaria se libertando de uma condição racial que a oprimia.
É importante destacar que, na década de 1930, as teses racialistas sofreram forte concorrência por parte das leituras culturalistas na interpretação da miscigenação. Aqui, merece destaque a figura de Gilberto Freyre (1900-1987), autor do importante e influente livro Casa Grande & Senzala (1933). Gilberto Freyre inverteu os termos do debate ao pensar não mais a “raça”, mas a “cultura”, da mesma forma que valorizou a “sociedade” em substituição ao “Estado” como a instância mais apropriada para a constituição de uma identidade nacional. Nessa interpretação, as heranças afro-brasileiras e indígenas, antes vistas como atavicamente (isto é, biologicamente) inferiores, eram agora valorizadas culturalmente e concebidas como fundamentais para o processo de construção da cultura brasileira. Neste sentido, a mistura de raças existente no Brasil entre brancos, negros e indígenas teria corrigido ou “democratizado”, segundo Freyre, as imensas distâncias sociais inerentes ao regime escravista. Em outras palavras, para Gilberto Freyre a escravidão no Brasil, longe de ter fortalecido a desigualdade e estabelecido um fosso intransponível entre dominantes e dominados, teria sido desenvolvida da maneira singular, diferenciando-se, por exemplo, daquela praticada no Sul dos Estados Unidos. No Brasil, ao contrário, seu caráter mais brando ou leniente foi resultado da ação eficaz da “família senhorial” (ou do “patriarcalismo”, isto é, de um modelo ou arranjo estrutural mais amplo existente na sociedade brasileira) em contemporizar dominantes e dominados, brancos e não brancos, reduzindo as distâncias entre a “casa grande” e a “senzala”.
Em face disso, nossa “democracia étnica” – termo que depois viria a ser conhecido como “democracia racial”, como veremos a seguir – seria, inclusive, preferível à “democracia política”, para a qual, segundo o autor, o Brasil, como também as formações sociais resultantes do mundo ibérico – Portugal, Espanha e suas antigas extensões além-mar, o que Freyre denominou também de mundo “luso-brasileiro” ou “civilização tropical” –, não estariam ainda preparados. Em suma, trata-se da formulação de que haveria certas “vantagens do atraso”, tais como a conciliação e a acomodação frente a processos que pudessem desencadear rupturas e conflitos agudos na sociedade. O Brasil, como representante de uma civilização “tropical” (clima, cultura e política incluídos), não teria, necessariamente, que trilhar os mesmos rumos políticos do “mundo anglo-saxão” (leia-se, a adoção do liberalismo e da democracia políticas, do individualismo, da defesa da igualdade e liberdade e do conjunto de direitos humanos universais) (BASTOS, 1998). Ao contrário, os trópicos representariam a variedade, a multiplicidade de formas, a plasticidade e a capacidade de combinar, mesclar e conciliar os desiguais num plano cultural maleável.