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Tópico II - Identidades

Cursista, após estudarmos um pouco esses conflitos, podemos dizer que os diferentes predicados usados para significar a “democracia racial” expressam, na verdade, perspectivas intelectuais, políticas e lugares sociais bastante demarcados. Contudo, e abrangendo também as próprias origens sociais dessas significações, é possível analisar a construção histórica e cultural da “democracia racial” e compreender o seu limite em termos de “cooperação”, “consentimento” e “compromisso”.

De acordo com o sociólogo Antonio Sérgio Guimarães, sua emergência se deu durante o Estado Novo (1937-1944), transformando-se ao longo do tempo e, “mais do que uma ideologia, ela foi um modo tacitamente pactuado de integração dos(as) negros(as) à sociedade de classes do Brasil pós-guerra [...] tanto em termos de simbologia nacional, como em termos de sua política econômica e social” (GUIMARÃES, 2005, p. 270). Evidentemente, com muitas limitações: por exemplo, durante o Estado Novo não implicou nenhum avanço em termos de direitos sociais e econômicos aos(às) trabalhadores(as) do campo (que, até a década de 1970, era a grande maioria da população), e tampouco abriu espaço para o reconhecimento de formações étnico-raciais que pretendessem participar da política (GUIMARÃES, 2005, p. 273). Por exemplo, a Frente Negra Brasileira, criada em 1931 para defender a igualdade de direitos e a participação dos(as) negros(as) na sociedade, e que chegou, segundo algumas fontes, a abrigar em torno de 100 mil associados nacionalmente, foi fechada em 1937, junto com outras associações e partidos políticos. Nesse sentido, é possível pensarmos que a ideia da “democracia racial” assentou-se em princípios universalistas genéricos, não considerou pertenças sociais específicas e, simbolicamente, atuou como ideal modernista de uma nação mestiça, daí a valorização de “cultura afro-brasileira” como equivalente à “cultura nacional”.

Em outras palavras, podemos dizer que um de seus efeitos mais duradouros foi a valorização, muitas vezes idealizada ou romantizada, de manifestações populares até então reprimidas (inclusive policialmente) ou desprezadas, como o samba, a capoeira, as festas populares regionais etc., que passaram a ser sinônimos de “cultura brasileira”. O fenômeno da “mestiçagem”, considerado até então a causa principal de todos os nossos males nacionais, a partir dos anos 30 tornou-se a “garantia de nossa originalidade cultural e mesmo de nossa superioridade de ‘civilização tropicalista’” (VIANNA, 1995, p. 31).

Desse modo, em certa medida, a música popular, em especial o samba, cristalizou a invenção dessa tradição, de um “Brasil mestiço” e pautado pela “democracia racial”. Diga-se de passagem, o encantamento suscitado em Gilberto Freyre com a música de sambistas e compositores(as) populares como Pixinguinha e Donga reforça sua ideia de que a música popular seria um elemento fundamental no movimento de valorização da pessoa  negra: a “valorização das cantigas negras, das danças negras, misturadas a restos de fados; e que são talvez a melhor coisa do Brasil” (FREYRE, 1979, apud VIANNA, 1995, p. 28). Assim como afirmava o autor Hermano Viana: “A vitória do samba era também a vitória de um projeto de nacionalização e modernização da sociedade brasileira. O Brasil saiu do Estado Novo com o elogio (pelo menos em ideologia) da mestiçagem nacional, a Companhia Siderúrgica Nacional, o Conselho Nacional do Petróleo, partidos políticos nacionais, um ritmo nacional. Na música popular, o Brasil tem sido, desde então, o Reino do Samba.” (VIANNA, 1995, p. 127).

Nesse sentido, o que queremos com esse retrospecto é demonstrar como que historicamente e sociologicamente a identidade nacional é construída, e de que forma a música, especialmente a música popular, são fundamentais nesse processo de construção.   Enfim, depois dessas questões, podemos nos perguntar: como a música popular está inserida no universo musical dos(as) nossos(as) estudantes atualmente? O que eles e elas escutam e entendem como gosto nacional? Que sociabilidades musicais fazem parte de suas vidas?  Que estilos musicais são hoje entendidos como representantes de uma  cultura popular brasileira? E, principalmente, como as tecnologias da informação e da comunicação atuam nessa construção de pertencimento identitário nacional? Por fim, podemos questionar, como essas e outras questões podem ser discutidas nas nossas aulas de Sociologia? Como a cultura digital constrói, difunde e transforma esses pressupostos identitários nacionais? Convidamos você, professor e professora, junto a seus alunos e alunas, a pensar sobre isso..

 

Sugestão de Atividade 2.3: Explorando o Samba - Socialização e Identidade

Caro(a) cursista, como pudemos ver nesta breve introdução, a transformação do samba em gênero musical representativo da “cultura brasileira” foi um processo histórico, inserido em um contexto político, social e cultural que permitiu essa operação.

Nesse sentido, sociologicamente é possível compreendê-lo enquanto fator que, numa perspectiva ampla, colaborou para a própria construção da “identidade nacional”. Por outro lado, é possível explorarmos, também sociologicamente, outras variantes desse mesmo fenômeno, por exemplo: os processos de identificação grupal; os espaços de sociabilidade que se formam em torno do samba; as letras de suas composições. Em suma, a compreensão de como agentes sociais como sambistas, compositores, arranjadores, letristas, diretores de escolas de samba, grupos e comunidades inteiras “vivenciam” esse gênero, essa sonoridade e, em certa medida, se socializam a partir deste gênero musical.

Nosso propósito aqui não é apresentar uma história do samba, mas oferecer algumas questionamentos que possam ser explorados em sala de aula. Uma espécie de pontapé inicial para que você, professor(a), possa explorar elementos do cancioneiro popular e da cultura digital em suas aulas de sociologia.

A ideia é mobilizar as teorias e perspectivas sociológicas para compreendermos algo que, apesar de nos ser tão próximo e quase “natural”, como o samba, encobre na verdade uma enorme complexidade. Ou, como já indicamos na introdução deste curso, pretendemos exercitar o “estranhamento” e a “desfamiliarização” como ferramentas dinâmicas para o ensino de sociologia.

Assim, uma vez que as letras de diversos sambas – tanto no passado como também contemporaneamente – atuam como crônicas de questões cotidianas, feitas a partir da perspectiva de quem as compõem, é possível dizer que a “sabedoria” do samba configura um ponto de vista, uma leitura do mundo, uma interpretação feita a partir de um determinado “lugar” social, de uma “sociabilidade” específica. Por mais que o samba, como vimos acima, tenha se transformado em patrimônio comum e símbolo de “brasilidade”, e também por mais que tenha se “comercializado” e se descaracterizado, alguns demarcadores de classe, de lugar/região, de etnicidade, entre outros, se mantêm. Como atividade de reflexão, propomos discutir, no local indicado pelo seu (sua) formador (a), sobre alguns pontos: seriam outros estilos e gêneros musicais, como o funk e o hip hop, possíveis de serem lidos nesta mesma chave de leitura, a da socialização e da identificação? Como a cultura digital interfere nesse espaço de pertencimento e de sociabilidade?

 


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