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Tópico II - Identidades

Cursista, entre as “ondas modernistas”, a da década de 1960 talvez tenha sido a que protagonizou, com maior intensidade, o vínculo entre cultura e política, bem como se expressou de forma mais intensa nos comportamentos, atitudes e valores.

Se em várias gerações anteriores a busca pela identidade nacional se fazia no âmbito da idealização do povo, dos debates raciais, da expectativa do progresso econômico e social, do encontro da realidade brasileira, muitas vezes simultaneamente, para a geração de intelectuais, artistas e pensadores de 1960, ainda que essas questões fizessem parte do discurso, havia contudo, um novo horizonte: a utopia revolucionária, herança recente de movimentos políticos internacionais, como o processo de descolonização no continente Africano na década de 1950, a Revolução Chinesa de 1949, a Revolução Cubana de 1959, a Guerra do Vietnã, as lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos, a “revolução sexual” em curso em diversas partes do mundo.

No Brasil, a vontade de transformação que vinha desde o governo Juscelino Kubitscheck encontraria no governo João Goulart novos impulsos, como a formação das Ligas Camponesas no campo (inspirador do MST), o movimento sindical urbano e o movimento estudantil. Paradoxalmente, acreditava-se que o homem novo que viria forjar a nova sociedade deveria, na verdade, ser encontrado nas nossas “raízes rurais”, no interior do “coração do Brasil”, “supostamente não contaminado pela modernidade urbana capitalista” (RIDENTI, 2005, p. 84).

A “brasilidade revolucionária” (termo cunhado por Marcelo Ridenti, em seu livro Em busca do povo brasileiro) dos anos 1960 tinha, portanto, muito de romantismo e idealização do povo, embora fosse um romantismo diferente daquele do século XIX: agora, vislumbravam-se utopias de transformação social de caráter socialista, que pudessem romper nosso ciclo de subdesenvolvimento e dependência externa. Esse ideal se expressava no teatro de vanguarda, no cinema, na literatura, na música. Os artistas engajados das classes médias urbanas passaram a se identificar com os “deserdados da terra”, tanto no meio rural como no ambiente urbano, e propunham uma arte “nacional-popular que colaborasse com a desalienação das consciências” (Idem, p. 86).

Entre os anos finais da década de 1950 e ao longo dos primeiros anos da ditadura militar instaurada em 1964, até que o regime recrudescesse seus instrumentos de repressão e censura em 1968 (com o Ato Institucional N. 5), havia no ar uma atmosfera cultural nova que tornava as fronteiras entre teatro, literatura e cinema bastante permeáveis e uma circulação mais intensa entre as diversas expressões artísticas.

No entanto, se essa chamada “brasilidade revolucionária” era a pedra de toque de vários artistas e intelectuais, ao menos dos mais engajados politicamente, a ânsia por novos comportamentos, por maior liberdade sexual, pela fruição da vida boêmia e pelo desejo de renovação era, digamos assim, o “espírito do tempo” que unia vários grupos, nem todos identificados pelas mesmas ideias de mudança social de caráter socialista ou revolucionário. Por exemplo, a Jovem Guarda (Roberto CarlosErasmo CarlosWanderléaJerry AdrianiRenato e seus Blue Caps, entre outros) e a chamada Música Popular Cafona (Waldick SorianoPaulo SérgioOdair José etc.) – os quais, diga-se de passagem, apareciam nas listas das maiores vendagens do mercado fonográfico e amplamente veiculados em rádios e programas de auditório –, além das letras de inspiração romântica, tematizavam também mudanças comportamentais como o uso da pílula anticoncepcional, a liberdade sexual, a valorização da “cultura jovem”.

No caso da “música popular cafona”, ou “música brega”, em geral pouco visitada pela bibliografia musical sobre o período (que tende a enfatizar o caráter político e de resistência de cantores da MPB, como Caetano Veloso e Chico Buarque), e caracterizada como “mau gosto”, seus compositores populares, na verdade, não apenas denunciavam o “autoritarismo e a segregação social existentes no cotidiano brasileiro”, como tiveram várias letras censuradas e proibidas de tocar em rádios (ARAÚJO, 2002, p. 15). Além disso, a origem social tanto desses artistas como do seu público era a mesma: classes médias, pobres, trabalhadores(as) e lumpen-proletariado vivendo nas grandes periferias das principais metrópoles brasileiras.

 

Efervescência cultural e tecnologia

Caro(a) cursista, não é tarefa das mais simples sintetizar a efervescência artística, fílmica, sonora e imagética dos anos 60 e 70. Em termos gerais, essa efervescência foi possível graças à massificação de certas tecnologias, bem como seu barateamento, tornando acessíveis a certos segmentos da sociedade a aquisição de equipamentos visando a produção e o consumo de “bens simbólicos”. No caso do cinema, isso foi crucial. Câmeras que poderiam ser carregadas com facilidade, equipamentos de gravação e mixagem de som, a dispensabilidade do estúdio, tudo isso permitiu o surgimento de uma geração de jovens produtores de cinema e de um movimento estético: o neorrealismo, em que o cineasta se colocava como alguém que retratava a realidade de forma quase documental, registrando as transformações sociais in loco.

Na música, no entanto, essas transformações podem ser ainda mais percebidas.  A massificação do rádio e da televisão não apenas ampliou o alcance e a influência dos artistas, impulsionando a indústria fonográfica, como também garantiu-lhes um espaço de consagração: os programas de auditório – como o “Jovem Guarda” e os “Festivais de MPB”, ambos da TV Record, entre 1965 e 1969. Pensando uma melhor compreensão, elencamos alguns exemplos para apresentar a  você. Porém, optamos por fazer uma seleção de algumas obras representativas, tendo como critério aquelas que mais explicitamente nos revelassem o “espírito do tempo” em que foram gestadas. Vejamos os exemplos selecionados.

 

Trecho do filme Rio Zona Norte (1957).

Retirantes, Candido Portinari (1944).

Trecho do filme Vidas Secas (1963).

Trecho do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964).

 

Comecemos pelo cinema. Nelson Pereira dos Santos, bastante influenciado, por sinal, pelos movimentos de vanguarda europeus, entre eles, o “Neorrealismo italiano”, explorou a complexidade, muitas vezes encoberta de idealismo, entre o mundo dos morros cariocas e a indústria fonográfica em seu filme Rio, Zona Norte. No trecho sugerido, nota-se a relação de exploração entre a personagem “Espírito da Luz” (vivida por Grande Otelo) e seu “agente” ou “empresário”, desconstruindo aquela imagem de confraternização entre sambistas e classe média tão valorizada anteriormente.

Em Vidas Secas, Pereira dos Santos registrou o sofrimento e miséria humanas que lembram a tela Retirantes, de Cândido Portinari. No caso da tela, o cubismo e o expressionismo acentuam o drama humano dos retirantes. Já no filme, a “luz estourada” usada nas sequências visa causar, no espectador, a sensação, mais realista, de aridez a que os personagens estão expostos na vida real.

No curto trecho selecionado de Deus e o Diabo na Terra do Sol, podemos perceber os vários elementos usados na composição fílmica de Glauber Rocha e seus diálogos, numa estética alegórica sobre a realidade brasileira e as expectativas de mudança: a literatura de cordel, com o repente falado pelos(as) personagens e pelo narrador ausente, a música orfeônica de Villa Lobos ao final, a paisagem agreste do sertão, a crítica social na denúncia da concentração fundiária.

Já quanto à sonoridade dos anos 60 e 70 no Brasil, também é possível dizer que, para alguns movimentos, houve um empenho na busca da identidade nacional. Para outros, tratava-se de demarcar outras sociabilidades e identidades mais ligadas ao consumo, ao comportamento individual e grupal, ao estilo de vida, à subjetividade. Talvez o que as englobasse fosse as vivência dos dilemas, angústias e utopias dos jovens urbanos brasileiros no período.

Exemplo interessante é o movimento tropicália, mais próximo àquela vertente da “brasilidade revolucionária”, de que nos falou Marcelo Ridenti. Na impossibilidade de analisarmos um conjunto mais amplo, sugerimos abaixo uma análise das letras Geléia Geral – espécie de “manifesto” do próprio movimento – e Batmacumba.
 

 

LETRA DA MÚSICA

Geleia Geral

Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplendente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o jornal do Brasil anuncia

[...]

"A alegria é a prova dos nove"
E a tristeza é teu Porto Seguro 
Minha terra é onde o Sol é mais limpo
Em Mangueira é onde o Samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem 
Pindorama, país do futuro

[...]

As relíquias do Brasil
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Super poder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade, jardim.

[...]

INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS

A música Geleia Geral tornou-se uma espécie de hino manifesto da Tropicália. Escrita pelo poeta Torquato Neto e por Gilberto Gil, a proposta contida nesta “geleia” era tornar legítimas todas as tendências musicais existentes no Brasil, do Samba ao Rock, resgatando tendências externas e incorporando-as à nossa “brasilidade”.

A junção e justaposição de palavras lembram também o manifesto antropofágico, como vimos. A multiplicidade de expressões, o resgate de tradições arcaicas em meio a tecnologias modernas, a mudança nos ritmos e sonoridades ao longo da própria música (que funde samba, iêiêiê, rock e baião), tudo forma, ao final, um quadro multicultural e ao mesmo tempo antropofágico.

Percebe-se também que a presença daquelas representações idílicas sobre a nacionalidade e o caráter nacional (“minha terra é onde o Sol é mais limpo”Pindorama país do futuro”) e, ao mesmo tempo, a indicação de lugares sociais específicos, como o bairro da Mangueira (“onde o Samba é mais puro”, “três destaques da Portela”), têm como efeito a desconstrução da própria ideia ufanista e nacionalista em prol de uma imagem mais multifacetada, dilacerada, do país.

 

 

 

LETRA DA MÚSICA

Batmacumba

Batmakumbayêyê batmakumbaoba
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batman
Bat
Ba
Bat
Batman
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê bamakumba
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumbaoba

INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS

A música Batmacumba, de Caetano Veloso e cantada pela banda Os Mutantes, é um ótimo exemplo da relação entre música, literatura e poesia. No caso, a disposição das palavras, dentro da música, forma uma poesia concreta, uma vez que seus versos são desconstruídos e reconstruídos ao longo da música. A canção também sugere, a exemplo de Geleia Geral, essa multiplicidade de expressões artísticas e culturais, nacionais e estrangeiras, sagradas e profanas, como Batman e Macumba, YêYê e Bat (percurssão). Uma indicação, caso queira desenvolver melhor tais leituras, é o livro de Gonzalo Moisés Aguilar, Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005).

 

 

Após esse breve retrospecto, o que gostaríamos de destacar é a forma com que esses estilos e movimentos existiram em diálogo com o momento  cultural, mas também  com as disposições tecnológicas existentes no período.  Os recursos técnicos e as possibilidades de difusão também são constituintes das representações e dos discursos produzidos por esses grupos. Além disso, colaboraram na composição do estilo de vida, e como falado anteriormente, dos “bens simbólicos”, das demarcações de identidades produzidas. E hoje, quais os recursos mais utilizados pelos grupos e movimentos artísticos e musicais? Quais os bens simbólicos e os estilos de vida que marcam as musicalidades brasileiras e /ou regionais? Como essas questões adentram o nosso  ambiente escolar?  Como, na função de educadores(as),  especialmente de Sociologia, nos relacionamos com esses estilos e os problematizamos em nossas escolas? Você já parou para pensar sobre isso?


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