Caro (a) cursista, propomos aqui um breve exercício de leitura das letras que compõem as músicas que indicamos, “leitura” essa não apenas textual, mas principalmente, sonora e audiovisual. Como nos exercícios anteriores, o acesso a elas também poderá ser feito por meio de celulares, smartphones, tablets e outras ferramentas digitais, de modo que você possa construir, junto com seus(as) alunos(as), narrativas e interpretações sociológicas a partir destas e de outras referências que consiga estabelecer. Os vídeos e letras acima nos permitem perceber como, através do Hip Hop e do Rap, certas identidades étnico-raciais, de classe, condição socioeconômica e de gênero, são reforçadas e/ou construídas.
Vamos começar por uma espécie de “releitura” contemporânea do motivo edênico de nossa identidade nacional, como vimos na primeira parte desse tópico.
Inicialmente, convidamos você a ouvir e acompanhar a letra e o vídeo de “O Caminho do Samba”. A narração desta música nos remete às propagandas televisivas de exaltação nacional, feitas durante o período da Ditadura Militar. Na primeira parte, a letra narra em primeira pessoa, a história do Samba, se apresentando como um patrimônio nacional gerado a partir da miscigenação e da conciliação de diferentes tradições, num processo harmônico e sem conflitos. Na segunda parte essa narrativa fica mais evidente, ao mencionar seu “lugar”: “vivo em um país na América do Sul / E faço parte de um povo alegre / De coração nobre / De um povo cordial e feliz / Que o receberá verdadeiramente / De braços abertos”. Ao longo da letra surgem referências ao solo fértil, ao clima, à agricultura de exportação e ao final, a menção a diversos artistas, intelectuais e personalidades, terminando com “Sou da terra de Pelé”. Reproduzimos abaixo a letra para que a acompanhemos.
Letra de “No Caminho do Samba”
Alô, amigos
Sou o ritmo mais popular de um grande país.
E o meu nome é samba
Sou muito conhecido hoje em dia em todo o mundo
Mas poucos sabem a minha história
Pois bem.
Vou contar-lhes um pouco de mim.
Nasci no século dezesseis
Na época da colonização na minha terra.
Sou originário do batuque africano
Minha etimologia é muito discutida
Alguns acreditam que sou a reverência
Com que o dançarino faz convite
A um dos componentes da roda
Outros me atribuem origem tupi
Significando “cadeia feita de mãos dadas”
Há quem acredite
Que derivo da existência de palavra em dialetos africanos
Significando “culto através da dança”.
Outros ainda, que eu derivo de “muçamba”
Instrumento africano em forma de chocalho ou maracas.
Bem...
Vamos deixar a minha etimologia de lado.
Vivo em um país na América do Sul
E faço parte de um povo alegre
De coração nobre
De um povo cordial e feliz
Que o receberá verdadeiramente
De braços abertos.
Um povo que vive em uma terra fértil
De clima ameno
Onde o sol brilha durante doze meses
Onde suas praias de areias brancas
São banhadas pelas águas azuis
Do oceano atlântico
Enfim, vivo em um país em eterna primavera.
Sou da terra do café, algodão, cacau, borracha,
E pedras preciosas.
Sou da terra da vitória régia, pororoca, Iguaçu,
Copacabana e Brasília.
Sou da terra do uirapuru, tucano, arara e sabiá.
Sou da terra de Santos Dumont, Osvaldo Cruz,
Jorge Amado, César Lopes, Oscar Niemeyer,
Lúcio Costa, Di Cavalcanti e Portinari.
Sou da terra de Carlos Gomes, Villa Lobos,
Sérgio Mendes, Carmen Miranda,
Chico Buarque de Holanda, Tom Jobim,
Roberto Carlos e Elis Regina.
Sou da terra de Pelé.
Agora, convidamos você a ouvir e acompanhar as letras e as músicas de “Liberte-se” e “Transformação”, ambas de autoria do rapper MV Bill. As duas músicas estão dispostas nesta sequência no Álbum “Causa e Efeito”, de 2010. Em “Liberte-se”, vemos a introdução de um trecho sampleado de uma música de Carlos Gardel, “Fumando espero”, interpretado por Dalva de Oliveira, (cantora considerada uma das grandes estrelas dos anos 1940, 1950 e 1960, representativa da “era do Rádio” nacional). A letra de MV Bill faz um contraponto a essa perspectiva melancólica presente na canção de Gardel, e é uma espécie de convite à luta cotidiana, um convite a que se encare “a vida para não cair” e que se valorize o contexto cotidiano.
Nas letras, isso fica evidente com a valorização da “força do seu pedigree [É sem tempo pra chorar] / Tem que ter suor para conquistar / Enquanto você fuma / A vida passa, e a sombra da fumaça / Te faz adormecer / vitória só a quem fizer por merecer / [Acredito em você] / Mas tem que ter atitude / Deixar de ver novela que faz mal para a saúde”, e assim a música segue neste tom até que, ao final dela, há um outro sampling, desta vez de um trecho de “No Caminho do Samba”, que acabamos de ouvir.
O trecho sampleado termina em “Sou da terra de Pelé”, e a faixa seguinte do álbum de MV Bill, “Transformação”, começa exatamente com a estrofe “Sou de lugar nenhum”. Como podemos ler abaixo, a letra expressa predominantemente a perspectiva dos(as) jovens pobres e moradores(as) de periferia, bem como a ascendência afrodescendente, como um contraponto ao “país rico” que “divide mal sua riqueza”.
Letra de “Transformação”, de MV Bill
Sou da terra de ninguém
Onde quem tem manda em quem não tem
Meu país é rico, só divide mal sua riqueza
Muitos com pouco, poucos com muito,
E tratam com frieza quem é de origem favelada,
Vida abalada, dura caminhada
Nosso país com dimensões continentais
Quem não tem quer ter,
Quem tem, quer ter mais
Deixa tudo desigual,
Gente analfabeta no cenário atual
Não pode ser normal ver
Muita adolescente sendo mãe fora de hora
Marca sua vida com o pai que vai embora
É comum do lado de cá
A escola abandonada
Por quem tem que trabalhar
Desiguala, a minoria rica não se abala,
Vive trancada, escondida num condomínio
Assistindo da aera VIP um extermínio
De um povo que luta
Sem as armas adequadas,
Várias vidas foram dizimadas,
Histórias apagadas,
Relações de conflitos foram geradas,
Quem é preto como eu
Fica indignado quando vê o boy
Tomando o espaço que é seu
Quem não se indigna
Não vai fugir da cerca,
E vai seguir permitindo
A mão que assassina.
[REFRÃO]
Transformação quando visto meu manto
Hora do combate,
Então enxugue o seu pranto
Vivo o que canto,
Meu orgulho talvez cause espanto,
Balanço e levanto,
Por isso eu to de pé.
Reto e direto pra quebrar o encanto
Em cada canto,
Depende da sua fé,
É nós que ta, pra mudar por enquanto
Só no adianto.
O tempo não para,
Tem gente que apanha
E não toma vergonha na cara
Ficaram parados no tempo
Envaidecidos dividiram o movimento
Veja só o rap,
Virou o partido da cara feia
Estão mais preocupados
Em cuidar da vida alheia,
Com grandes bonés,
Pequenas idéias,
Falso reinado, coroa de rei,
Castelo de areia,
O discurso envelheceu
Até a favela no meio da miséria cresceu
Tem vídeo game de última geração,
Tênis bom,
Na velocidade que ta no momento
Não da pra manipular
Com esse tipo de pensamento
Que vem de dentro
Da favela ao centro
Existe um lamento
Embutido no sentimento
Que não deixa calar
A Voz que ta no ar
A chama combativa não pode se apagar
Há muita coisa a ser mudada
Não quero fazer parte do bonde
Dos que só falam e não fazem nada,
Sem se mover, cada um no seu lugar,
Perderam a capacidade de se indignar
Só tem força quando é nós contra nós
Na frente do opressor baixa cabeça
E perde a voz,
O mesmo opressor é
Aquele que faz as leis,
Desfavorece nós pra não chegar a nossa vez
Sem timidez, não me canso
Enquanto não tiver avanço,
Com poucos aliados
Pois nosso povo é manso,
Só vira bicho quando o assunto é futebol
Nudez no carnaval, latinha de Skol,
É tipo cirurgia sem anestesia,
Bebendo do veneno entorpecente
Todo dia, seguindo a cartilha
Que aprisiona a mente,
Parece que essa gente está doente.
As letras que selecionamos abaixo aludem tanto à condição afrodescendente quanto de gênero, ao abordarem situações do cotidiano de uma sociedade racista e machista - na qual as mulheres ainda são subalternizadas e as pessoas de etnias não-brancas ainda são discriminadas e inferiorizadas - apesar de todos os avanços representados pela emergência dos movimentos feministas desde o século XIX, e dos debates étnico-raciais intensificados ao longo do século XX.
Disponibilizamos, como sugestão para uma leitura inicial, a Caixa Didática de Relações de Gênero e Sexualidade, acessível por meio da plataforma Prezi, feita por estudantes e bolsista PIBID do curso de graduação em Ciências Sociais da UFPR. Há, evidentemente, outras referências, vídeos e documentários que podem ser usados como ferramentas sociológicas para esta discussão. No entanto, como essa Caixa Didática contem também referências bibliográficas e um pequeno glossário, além de ter sido concebida para auxiliar os professores e professoras da educação básica, pensamos ser uma boa introdução.
Os trechos selecionados abaixo são da música “Falsa Abolição”, da dupla de rappers Joice (Preta Rara) e Jaqueline (Negra Jaque), que formam o grupo Tarja Preta, da Baixada Santista do Estado de São Paulo. As duas cantoras são também ativistas da Frente Nacional das Mulheres no Hip Hop, e neste cenário foram, ao lado de outras, importantes pioneiras na articulação entre o movimento hip hop e as discussões feministas no Brasil.
Selecionamos alguns trechos da faixa, começando pela introdução que, de saída, já nos coloca diante de outra importante referência identitária nacional que, como vimos na primeira parte deste tópico, buscava o “branqueamento” como solução para o processo civilizador. Na verdade, a própria introdução já é uma síntese da letra, pois fala de “embranquecimento” e preconceito racial e ao mesmo tempo, alude a processos de socialização que desde a infância marcam a experiência de mulheres negras e pobres: “meninas negras não brincam com bonecas pretas / Foi a Barbie que carreguei até a minha adolescência”.
Na sequência, a letra tematiza diversas questões contemporâneas, dentre elas: processos de estigmatização que envolvem, na sociedade brasileira, a desvalorização da estética negra a partir de padrões normativos de beleza (“Sempre riam do meu cabelo e do meu nariz / Cabelo enraizado é bom pra mim”); a dimensão contraditória que envolve a ascensão social e aumento do poder aquisitivo com uma realidade de discriminação racial (“Eu gasto, eu consumo / Aí você me aceita / Isso é um absurdo / Dinheiro não tem cor, mas pra trabalhar tem); o controle social perverso da violência policial (“E é tiro da polícia para todos os lados / Genocídio cresce no meu povo negro / Porque temos que morrer / Só porque somos pretos / Policia racista, raça do diabo”); a ausência de qualquer política de integração social a partir do processo de abolição da escravatura (“13 de maio a Falsa Abolição, dos escravos / A princesinha nos livrou e nos condenou/ O sistema fez ela passar como adoradora / Não nos deu educação e nem informação”).
Trechos de “Falsa Abolição”, de Tarja Preta
Tô cansada do embranquecimento do Brasil
Preconceito racismo como nunca se viu
Meninas negras não brincam com bonecas pretas
Foi a Barbie que carreguei até a minha adolescência
Porque não posso andar no estilo da minha raiz
Sempre riam do meu cabelo e do meu nariz
Na novela sou empregada
Da globo sou escrava
Não me dão oportunidade aqui pra nada
Sou revolucionária negra consciente
Não uso corpo, eu não me mostro eu uso a mente
Só afro descendente você vai ter que me aceitar assim
Cabelo enraizado é bom pra mim
13 de maio a Falsa Abolição, dos escravos
A princesinha nos livrou e nos condenou
O sistema fez ela passar como adoradora
Não nos deu educação e nem informação
Lei do sexagenário ai foi tiração
Libertaram os negros velhos, sem nenhuma condição
Lei do Ventre livre ou do condenado
Pequenos negros sem pai, para todos os lados
Cabelo pixaim, da pele preta
Aparência não me rebaixa, porque amo ser negra
Sou mais uma guerreira que como Dandara
Quero conhecer o meu passado
E família na África
Se a música acima apresenta as relações de gênero como parte de um processo mais amplo, envolvendo as questões de afrodescendência e marginalidade no Brasil, as letras e músicas abaixo, ainda que não fujam da identidade étnico-racial, especificam outras situações e experiências. Estas estão marcadas pelos movimentos feministas e pela igualdade de gênero que lutam, também, por políticas públicas que garantam a saúde das mulheres.
A letra abaixo, da MC Luana Hansen e Elisa Gargiulo, feita em parceria com o movimento Católicas pelo Direito de Decidir, trata do polêmico tema da descriminalização do aborto, que há décadas vem sendo debatido pelos diferentes movimentos feministas brasileiros. A letra apresenta, além de diversas estatísticas e dados sobre aborto ilegal no Brasil, a extrema desigualdade de condições socioeconômicas que se traduzem num processo de vitimização de mulheres negras e pobres, além de expôr diferentes críticas a como esse debate vem sendo realizado no Brasil, em especial, no que se refere aos aspectos morais, que recorrentemente, se sobrepõem aos aspectos relacionados à saúde pública, ao direito ao corpo e à liberdade individual.
Trechos da letra de “Ventre Livre de Fato”
Nasceu! Mais um fruto do acaso
E o mané que não quer nada, o sobrenome é "descaso"
Uma gravidez indesejada, mesmo com a prevenção
Não importa sua crença ou religião
E imagina, de uma forma perigosa e clandestina
Como é que vai fazer para mudar a sua sina
Um direito que em vários países já é estabelecido
No Brasil, quase sempre, passa despercebido
Hipocrisia: Pra o desconhecido é punição
Mas se for da família, é só tratar com discrição
Morre negra, morre jovem, morre gente da favela
Morre o povo que é carente e que não passa na novela
Lutar pela legalização do aborto
É lutar pela saúde da mulher
1 milhão de abortos no Brasil, por ano
Vai dizer que não sabia? Vai dizer que é engano?
A cada 7 mulheres, uma já fez aborto
Isso é estatística, não é papo de louco
Inseguro, feito de uma forma clandestina
Acorda Brasil! O nome disso é "chacina"
Como podemos perceber, cada item acima consiste na apresentação de um conjunto de músicas e letras que dialogam com o nosso Tópico 2 – Identidades. Com base nas leituras e sugestões apresentados nesse tópico, você poderá solicitar aos(às) estudantes que escrevam comentários e os compartilhem na rede social do grupo, tendo como base as questões iniciais abaixo:
A qual ou quais relações identitárias esta música/letra se refere?
Em que medida esta(s) identidade(s) pode(m) ser questionada(s)? E no caso de seu questionamento, quais grupos sociais estão contemplados e/ou reivindicam ser contemplados mediante tal expressão musical e artística?
Qual o contexto histórico em que esta música/letra foi escrita? E no caso, como este contexto dialoga com a música em questão?
Quais as relações possíveis de serem estabelecidas entre a música/letra e o seu cotidiano. Isto é, em que medida esta composição consegue representar situações vividas por você?
As respostas a estas perguntas podem resultar em alguns argumentos que você, professor(a), poderá discutir em sala de aula, mobilizando as leituras sociológicas sobre a construção de identidades que tivemos contato até então.